À medida que eventos climáticos extremos impactam as cidades brasileiras com mais frequência e intensidade, governantes municipais têm se visto diante do desafio urgente de adaptar as cidades. Em outros países, esse desafio é parte da agenda urbana há séculos.

É o caso da Holanda. Com 26% do território abaixo do nível do mar e 60% com risco de inundação, a população se organizou em “conselhos da água” que foram as primeiras instituições democráticas do país. A gestão hídrica e a adaptação climática são vistas como agendas de estado, e o poder público incorpora infraestruturas tradicionais e soluções baseadas na natureza (SBN) como ações complementares, e não antagônicas, no planejamento para resiliência.

Para conhecer essa realidade, a Frente Nacional de Prefeitas e Prefeitos (FNP) e o WRI Brasil realizaram uma missão com lideranças municipais brasileiras por cinco cidades holandesas. Parte da agenda da Comissão Permanente da FNP de Adaptação Urbana e Prevenção de Desastres (CASD), a missão percorreu, com financiamento do Instituto Itaúsa, os municípios de Haia, Amsterdã, Roterdã, Delft e Nimega (Nijmegen), com o objetivo de fortalecer lideranças locais para criar estratégias de resiliência focadas nas pessoas.

Mais de 25 participantes, incluindo prefeitas e prefeitos, vices, secretárias e secretários municipais de Boa Vista (RR), Igarassu (PE), João Pessoa (PB), Juiz de Fora (MG), Niterói (RJ), Poá (SP) e Santa Bárbara do Tugúrio (MG), conheceram as soluções de planejamento, gestão, governança, parcerias e implementação técnica de projetos que fazem da Holanda uma referência em adaptação climática. A seguir, compartilhamos algumas dessas boas práticas.

Governança integrada

A realidade geográfica da Holanda exige planejamento a longo prazo e governança integrada entre as autoridades de água, governo federal e governos locais. Em Haia, a comitiva visitou a Associação de Municípios Holandeses, onde conheceu o histórico da governança hídrica nos Países Baixos e como se organizam os municípios.

A governança hídrica do país inclui “autoridades da água” — entidades responsáveis pela gestão, monitoramento e regulação dos recursos hídricos. Eleitas a cada quatro anos, as autoridades foram a primeira forma democrática de governo da Holanda. Esse histórico e estrutura foi apresentado à comitiva na Waternet, uma das nove companhias de água do país, por representantes da Autoridade de Água da região de Amsterdã e da Associação das Autoridades Regionais de Água nos Países Baixos.

Soluções baseadas na natureza

Se há dicotomia entre infraestrutura cinza e infraestrutura verde-azul, a Holanda é uma exemplar exceção. Sistemas de diques convivem com parques alagáveis, em uma mostra de como engenharia e natureza são componentes valiosos, necessários e complementares no desafio da adaptação.

Em Amsterdã, a missão conheceu a estratégia que “esverdeou” a cidade integrando ações de planejamento urbano, meio ambiente e mobilidade. O código de obras municipal prevê que todo projeto de impermeabilização do solo precisa compensar com 15% da área para espaços verdes dentro do perímetro da cidade. Hoje, metade da cidade é de áreas verdes. A missão visitou SBN como jardins filtrantes que aproveitam as áreas de trilhos de trem, e jardins que armazenam água da chuva e servem como telhado verde sobre bicicletários subterrâneos.

Em Roterdã, a comitiva se reuniu na sede do Centro Global em Adaptação (GCA), localizada no maior escritório flutuante do mundo. A organização internacional apoia soluções de adaptação ao redor do mundo. Na sede da CGA, a comitiva conheceu estratégias e exemplos de projetos na área de infraestrutura, dados e SBN.

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Jardim de chuva no projeto de transformação urbana e adaptação climática em ZoHo district, em Roterdã (foto: Fernanda Maschietto/WRI Brasil)

Participação comunitária

A participação comunitária nas iniciativas de adaptação urbana é fundamental para projetos mais efetivos e duradouros. Em obras públicas, a cocriação de projetos junto à população leva a soluções que respondem melhor às múltiplas demandas e desafios locais, e gera um senso de utilidade para esses espaços que aumenta o cuidado da população com os mesmos.

Roterdã conta com dez “praças de água”. Nos meses de inverno, esses espaços públicos aliviam os sistemas de drenagem e esgoto, captando e armazenando água da chuva no subsolo. Nos meses secos de verão, a água armazenada pode ser usada para irrigação. A comitiva visitou uma dessas praças, planejada junto a empreendedores locais e à comunidade. Hoje, eles são parceiros no cuidado das hortas comunitárias, jardins, quadras de esporte e playground.

Engajar a população também é uma forma de mudar comportamentos. Um exemplo disso foi uma competição lançada entre Roterdã e Amsterdã  incentivando os moradores a substituírem os ladrilhos de seus quintais e calçadas por jardins. De forma lúdica, a competição promoveu um aumento da área permeável para reduzir inundações, fortaleceu os laços comunitários e deixou as cidades mais verdes e agradáveis. A prefeitura de Roterdã também incentiva, por meio de subsídios, soluções sustentáveis nos telhados das edificações, como painéis solares, jardins e soluções de armazenamento de água.

laboratório de soluções sustentáveis da UT Delft
Green Village: laboratório de soluções urbanas sustetáveis na TU Delft ajuda a acelerar a transição para infraestruturas resilientes (foto: Andressa Ribeiro/WRI Brasil)

Ecossistema de inovação tecnológica

Delft está no nome e é lar da maior e mais antiga universidade técnica da Holanda. Na TU Delft, a comitiva foi recebida no Green Village. Trata-se de uma pequena cidade-laboratório onde pesquisadores, empresas e governos desenvolvem tecnologias para serem aplicadas em condições reais, acelerando a transição para infraestruturas urbanas resilientes. 

O grupo também visitou a Faculdade de Engenharia Civil e Geociências, onde o professor de gestão hídrica e engenharia Jules van Lier e a professora de projeto urbano Taneha Bacchin reforçaram a importância de repensar as cidades e criar estratégias territoriais e regionais a partir de um olhar sistêmico de paisagem, considerando os cursos d’água, zonas de amortecimento, zonas urbanas e agrícolas.

A comitiva conheceu ainda o Instituto Deltares, organização de pesquisa e consultoria que conta com um dos maiores laboratórios do mundo para estudar estruturas contra tsunamis e erosão costeira do mundo. Um dos projetos de sucesso na área de adaptação é o Sand Motor, que protege a costa com areia movida por correntes naturais.

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Instituto Deltares é uma das principais organizações especializadas no estudo de águas costeiras e subterrâneas (foto: Fernanda Maschietto/WRI Brasil)

Convivência com as marés

Com a mudança do clima, é preciso considerar mais áreas de inundação respeitando os contextos naturais, garantindo mais benefícios e segurança do que tentar lutar contra o rio. A Holanda tem aprendido — e ensinado — essa lição.

Em 2007, o governo holandês iniciou o programa Espaço para o Rio (Room for the River), que até 2018 já havia implementado mais de 30 projetos de recuperação e criação de espaços alagáveis, a partir de intervenções como a reconfiguração de áreas ribeirinhas, criação de canais de alívio, alteração e realocação de diques e remoção de pôlderes.

A parte mais complexa foi realizada em Nimega (foto no topo deste artigo), onde o rio Waal faz uma curva acentuada formando um gargalo. A estratégia adotada integrou soluções baseadas na natureza com intervenções de engenharia, como um dique de 350 metros, e um canal de alívio que acomoda o rio em épocas de cheia. Além de proteger a cidade de inundações, a solução virou um espaço público de lazer e contemplação, uma praia, local de esportes náuticos e apresentações culturais.

praça em beira de rio
A multifuncionalidade também é característica dos parques de maré, em Roterdã, que converteram antigas zonas portuárias em parques alagáveis com benefícios ecológicos e recreativos (foto: Fernanda Maschietto/WRI Brasil)

Expertise que se dissemina

O contexto estimulou o desenvolvimento de uma forte cultura de gestão de riscos, cooperação, horizontalidade e visão de longo prazo nos Países Baixos, que hoje “exportam” essa expertise para outros países. É o caso da Agência Empresarial Holandesa (RVO), cujo programa de redução de risco de desastres apoiou Porto Alegre após as inundações de 2024.

Por meio do apoio à Comissão Permanente da FNP de Adaptação Urbana e Prevenção de Desastres (Casd), o WRI Brasil apoia tecnicamente municípios brasileiros para que desenvolvam e adaptem essas visões e soluções aos seus contextos. Talvez um dos maiores aprendizados que as lideranças que participaram da missão organizada por FNP e WRI Brasil tragam de volta às suas cidades seja a perspectiva holandesa que transforma ameaças hídricas em oportunidades de desenvolvimento integrado.